A maratona do PT sem sair do lugar

Foto Orlando Brito

O bom senso recomenda cautela quando perdedores se reúnem para avaliar uma derrota. O PT até teve esse cuidado ao formar uma comissão, com representantes de todas as suas correntes internas, para elaborar uma resolução consensual sobre as causas do revés eleitoral e como o partido deve proceder no governo Jair Bolsonaro. O resultado foi um textão com cerca de 70 tópicos, verdadeira colcha de retalhos para atender às concepções e palavras de ordem das diversas alas.

Entre tantos itens, havia reconhecimento de apenas um erro — uma tímida, com muitas ressalvas, e corriqueira autocrítica nas conversas entre eles mesmos: “A guinada neoliberal dada em 2015 na política econômica pesou mais que os nossos grandes acertos, contribuindo para a derrubada do governo Dilma Rousseff em 2016. E, nas eleições de 2018, ao invés de culpar as forças neoliberais que desestabilizaram e depois derrubaram nosso governo, uma parte do povo — vítima da recessão e da mídia golpista — aceitou a narrativa segundo a qual a culpa recaía sobre o PT”.

Nadica de nada sobre o envolvimento do partido com a corrupção. A expectativa era de que a resolução fosse aprovada sem maiores polêmicas.

De nada valeu tanta prudência. A orientação de Lula, preso em Curitiba, foi de que qualquer mea culpa seria fazer o jogo dos adversários. Na sexta-feira (30), mal começou a reunião no hotel San Marco, em Brasília, dois textos alternativos foram apresentados pelas correntes majoritárias Construindo Novo Brasil (CNB) e Movimento PT. Entrou em cena o ex-ministro Luis Dulci — o escriba preferido de Lula antes, durante e depois que saiu do poder — para que o texto final ficasse nos moldes desejados pelo cacique-mor do PT.

Lula – Foto Orlando Brito

Isso em meio a um processo de intensos debates, acirradas divergências, e um vai e vem de versões para o documento que se arrastou pelo sábado adentro. O texto final só foi concluído às 22h58m e divulgado no site do PT às 23h11m, mais de oito horas depois de anunciada a sua aprovação pelo plenário do Diretório Nacional. Nesse ínterim, trechos foram suprimidos, outros incluídos e depois também retirados, em sucessivas versões que são um bom retrato do cabo de guerra interno no PT.

A primeira versão, aquela que se referia à guinada eleitoral no começo do segundo mandato de Dilma Rousseff, foi alvo de queixas da própria ex-presidente, em um longo e confuso discurso, que chegou a cansar até a sua fiel escudeira Gleisi Hoffmann, que sem sucesso fez uma tentativa de abreviar a fala de sua ex-chefe.

Senadora Gleisi Hoffmann (PT/PB).
Senadora Gleisi Hoffmann. Foto Orlando Brito

Na tarde de sábado, depois da aprovação pelo plenário, foi divulgado o que seria o texto final, ainda sujeito a uma ou duas emendas. Gleisi Hoffmann deu o tom: “Não tem autocrítica no texto. O PT faz autocrítica na prática. O PT fez financiamento público de campanha, o PT está reorganizando as bases, o PT está com os movimentos sociais. Nós não faremos autocrítica para a mídia e não faremos autocrítica para a direita do País”.

Mas esse tal texto “sem autocrítica” na realidade fazia um mea culpa em sentido inverso ao que setores do partido, antigos aliados, e também os adversários vinham cobrando: O PT reconhecer que, sob as asas de seus governos, ocorreu um dos maiores escândalos de corrupção da história. O que constou nessa versão de sábado à tarde pareceu um arrependimento do PT por ter respeitado as regras democráticas durante seus 12 anos de poder, no mesmo diapasão de outras polêmicas teses internas, amenizadas durante a campanha eleitoral. Transcrevo:

“O conjunto do partido parece ter incorrido em alguns equívocos durante os nossos governos. O primeiro foi o `republicanismo`, fomos republicanos com quem não é e nunca foi republicano, a mídia monopolista, parte do Judiciário que sempre foi reduto e reflexo das elites mais atrasadas e antigas do escravismo nacional, os serviços de inteligência, as Forças Armadas e os aparatos de segurança, ainda sob controle dos que estavam no poder na época da ditadura de 1964-1985, corporações conservadoras e que se pautavam apenas por interesses próprios e pelas disputas de poder para seus agrupamentos, como parte do MP e grande parte da PF. Permitimos que esses grupos se reproduzissem e acumulassem força para nos derrubar numa ruptura da Constituição”.

General Eduardo Villas-Bôas – Foto Orlando Brito

Horas depois, esse tópico sobre o tal republicanismo evaporou, e a classificação das Forças Armadas no grupo de “quem não é e nunca foi republicano” suprimida. A única referência explícita a cúpula militar foi  sobre a entrevista do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, que disse ter ido ao limite na controvertida mensagem que divulgou na véspera da votação no STF  do pedido para que Lula não fosse preso. “Pela chantagem agora tornada pública, anunciada pelo comandante do Exército, para que o STF negasse habeas-corpus a Lula”.

Além de repetir acusações e ataques a juízes, procuradores, policiais e jornalistas, na surrada narrativa de um grande complô contra o PT e Lula, que não colou nas campanhas eleitorais de 2016 e 2018, a resolução tenta dar um caráter internacional a essa tal conspiração: “O jogo da disputa política internacional resultou num esforço de desestabilização institucional de nosso país pelo fato de estarmos construindo uma nova arquitetura internacional pelos Brics, inaceitável para os EUA, tanto é que este ajudou e financiou as diferentes fases do golpe aqui”.

Dilma Rousseff. Foto Orlando Brito

Por essa narrativa, não dá nem para culpar Donald Trump pelo “golpe” que cassou Dilma Rousseff. Quando o Senado aprovou o impeachment, no dia 31 de agosto de 2016, Trump ainda era um azarão na corrida presidencial americana, que venceu em 9 de novembro do mesmo ano. Portanto, na linha do tempo petista, a ajuda e o financiamento ao tal golpe teria começado na gestão Barack Obama.

Por que o PT insiste nessas narrativas que não convencem a população? O que sempre se disse é que elas sustentam, aqui e mundo afora, as campanhas para apresentar Lula como perseguido político e fazer barulho contra a sua prisão. Mesmo entre petistas há a avaliação de que essa tática não deu certo. O problema para uma revisão de rumo, com uma autocrítica de verdade, é o risco de contrariar boa parte dos devotos que se recusam a aceitar que Lula possa ter cometido qualquer pecado.

O custo político de continuar insistindo em um discurso que não cola na opinião pública é o PT se isolar cada vez mais de parceiros tradicionais que cansaram desse samba de uma nota só.

A conferir.

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