Falta um porto

Refugiados turcos. Foto ONU

Sempre que estou agoniado, recorro à literatura. Quando estou muito desorientado, recorro aos latino-americanos. Sei lá, quem sabe o Belchior tenha razão e, por isso, o tango argentino me vai bem melhor que um blues. Talvez, quem sabe também, seja a alma latina que herdei dos meus ascendentes portugueses.
Inspirado nessa herança, eu me lembro de Pessoa:

«Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.»

Taí, tudo vem da partida, que sempre era pelo mar.

Toda essa digressão é para ressaltar que sempre na nossa formação há um barco, uma nau.

Então, hoje recorro ao Gabriel García Márquez, louvado por Cem Anos de Solidão, de 1967, autor também do nem sempre lembrado O Amor nos Tempos do Cólera, de 1985, para falar de ancorar.

Nesse segundo livro, Gabo discorre de maneira genial sobre o romance impossível por mais de 50 anos de Fermina Daza e Florentino Ariza. Fazendo uma sinopse super condensada e já contando o final do livro, o casal, para viver todo o amor já outonal, embarca num barco e hasteia a bandeira do cólera. Pronto, fica proibido aportar em qualquer porto. O destino é ficar singrando enquanto fodem como dois adolescentes a descontar o tesão que a vida tinha evitado.

Placa na cidade de Vigo. Eu mesmo a fotografei.

Hoje, longe de qualquer romantismo, lirismo, ou lembrança de sagas de antigamente, a realidade joga na nossa cara a crueldade da nossa raça. Barcos lotados de famélicos, quase todos negros, mulheres e homens, juntos e misturados com crianças, bebês também, cruzam o Mediterrâneo, sem ter onde aportar.

Logo esse mar, um dos berços de uma civilização que, definitivamente, não deu certo. Que bom restar a literatura como refúgio para barcos que levam a esperança e o amor. Há no Porto de Vigo, na Galícia, a seguinte inscrição para lembrar aqueles que embarcaram rumo a uma vida melhor:

«Galicia non se esquece dos seus emigrantes que coas suas bágoas regaron a historia do nosso porto.»
Muito já se louvou quem partiu. Agora, ninguém quer permitir quem precisa chegar. Pena.

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